Eis um disco para quantos apreciaram a associação de Ornette Coleman com os Master Musicians of Jajouka, patente em “Dancing in Your Head”, e que foram seguindo as não poucas combinações que o jazz foi tendo com as músicas árabe e berbere ao longo da sua história, com exemplos discográficos notáveis como “Noon in Tunisia”, de George Gruntz, e figuras que desse cruzamento têm feito notáveis percursos, começando por Rabih Abou-Khalil. Não sendo um álbum de jazz, “And Who Sees the Mystery” retrata todo o fascínio que o Norte de África e o Médio Oriente provocaram neste género musical, muito por via da admiração que Paul Bowles e os escritores da Beat Generation durante algum tempo radicados em Tânger dedicaram à música tradicional de Marrocos. Pois foi Bowles, precisamente, quem descobriu e começou por gravar a arte de Jajouka, o que fez com que mais tarde o guitarrista de rock Brian Jones, dos Rolling Stones, se interessasse pela mesma e, mais tarde, também Ornette o fizesse. Ora, a devolução do arquivo de Paul Bowles a Marrocos, em 2010, levou à organização de um projecto artístico colaborativo que investigou a recepção local daquela colecção de registos e reflectiu sobre questões de preservação do património e práticas neocolonialistas. O artista sonoro suíço Gilles Aubry, conhecido igualmente como membro do grupo noise Monno, foi um dos participantes e este é o resultado da sua contribuição. Durante os anos de 2013 e 14, Aubry esteve a gravar ensaios e “soundchecks” de músicos das montanhas Atlas – mais exactamente da aldeia de Trafaout (visitada por Bowles em 1959), com todos eles devidamente creditados na ficha técnica –, utilizando de imediato o microfone como processador sonoro. Em estúdio, para além do trabalho de montagem desses “field recordings” já por si fragmentários e interferidos por ocorrências não propriamente musicais, acrescentou outros tratamentos electrónicos, explorando aspectos de ressonância e “feedback”. A partir da música Amazigh criou uma peça musical que a transcende sem a apropriar nem transfigurar, o que era um risco evidente. Algo de semelhante ao que já tinha feito antes com recolhas do dia-a-dia das populações de Kinshasa, no Congo, com materiais áudio do cinema de Bollywood e de funerais na Índia ou com bandas-magnéticas em que se ouvem prisioneiros da Segunda Guerra Mundial. O efeito Jajouka continua bem vivo…
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Re√iew: Gilles Aubry — And Who Sees The Mystery on Jazz.pt
https://jazz.pt/ponto-escuta/2017/06/16/gilles-aubry-and-who-sees-mystery-cargo-records/
Eis um disco para quantos apreciaram a associação de Ornette Coleman com os Master Musicians of Jajouka, patente em “Dancing in Your Head”, e que foram seguindo as não poucas combinações que o jazz foi tendo com as músicas árabe e berbere ao longo da sua história, com exemplos discográficos notáveis como “Noon in Tunisia”, de George Gruntz, e figuras que desse cruzamento têm feito notáveis percursos, começando por Rabih Abou-Khalil. Não sendo um álbum de jazz, “And Who Sees the Mystery” retrata todo o fascínio que o Norte de África e o Médio Oriente provocaram neste género musical, muito por via da admiração que Paul Bowles e os escritores da Beat Generation durante algum tempo radicados em Tânger dedicaram à música tradicional de Marrocos. Pois foi Bowles, precisamente, quem descobriu e começou por gravar a arte de Jajouka, o que fez com que mais tarde o guitarrista de rock Brian Jones, dos Rolling Stones, se interessasse pela mesma e, mais tarde, também Ornette o fizesse.
Ora, a devolução do arquivo de Paul Bowles a Marrocos, em 2010, levou à organização de um projecto artístico colaborativo que investigou a recepção local daquela colecção de registos e reflectiu sobre questões de preservação do património e práticas neocolonialistas. O artista sonoro suíço Gilles Aubry, conhecido igualmente como membro do grupo noise Monno, foi um dos participantes e este é o resultado da sua contribuição. Durante os anos de 2013 e 14, Aubry esteve a gravar ensaios e “soundchecks” de músicos das montanhas Atlas – mais exactamente da aldeia de Trafaout (visitada por Bowles em 1959), com todos eles devidamente creditados na ficha técnica –, utilizando de imediato o microfone como processador sonoro. Em estúdio, para além do trabalho de montagem desses “field recordings” já por si fragmentários e interferidos por ocorrências não propriamente musicais, acrescentou outros tratamentos electrónicos, explorando aspectos de ressonância e “feedback”. A partir da música Amazigh criou uma peça musical que a transcende sem a apropriar nem transfigurar, o que era um risco evidente. Algo de semelhante ao que já tinha feito antes com recolhas do dia-a-dia das populações de Kinshasa, no Congo, com materiais áudio do cinema de Bollywood e de funerais na Índia ou com bandas-magnéticas em que se ouvem prisioneiros da Segunda Guerra Mundial. O efeito Jajouka continua bem vivo…
— Rui Eduardo Paes, Jazz.pt